terça-feira, 21 de setembro de 2010

Retrato Social


Acordo por volta das 6 da manhã. Toda a gente sabe qual o estado do Serviço Nacional de Saúde e, embora não viva no interior e diste apenas 20 quilómetros do centro do Porto, já não sou o primeiro a chegar ao centro de saúde, ou USF Nova Era, dêem-lhes nomes diferentes e um aspecto renovado, mas no fundo é a mesma coisa.
Sou o segundo numa fila que vai engrossando enquanto o dia não amanhece. A noite ainda não se foi embora e o sol tarda a aparecer porque o tempo não passa de tantos vezes que olho para o relógio. Salvação, trouxe o computador e escrevo, no entanto as pessoas que me rodeiam não parecem muito preocupadas em não terem nada para fazer porque encetam em conversas e quase todos se conhecem, embora este USF abranja uma área bastante grande e algumas centenas de pessoas ou até milhares.
Curiosamente ninguém parece doente, por isso mesmo estão aqui, apenas e como eu precisam de “papéis”, praticamente remetem médicos a meros executivos e a uma secretária sem exercer o papel de um real médico. No entanto, sem estes papéis os custos do serviço de saúde aumentam exponencialmente, daí uma luta pelas vagas que começa bem cedo.
Mas não estou aqui para criticar, até porque eu não faria melhor e remeto-me a observar e a ouvir as conversas por um ouvido enquanto o outro ouve música. Boa música.
Aqui perto fica uma estação grande. A estação de Recarei-Sobreira. Ainda de noite vejo gente a chegar para o comboio, a conta-gotas, cansadas e remetidas já à ideia de terem de passar uma hora no comboio até chegarem ao Porto, 8 de trabalho, 1 ou 2 desperdiçadas em lanches ou almoços e outra de regresso a casa, num total de 10 horas ou mais. Mais 8 horas para dormir, e não sobram mais de 4 horas. Tanto que é tão pouco para descansar. As pessoas acordam já visivelmente cansadas e com vontade de dormir mais, mas toda a gente é assim, mesmo que durma 12 horas, acordo com sono. Portanto há é que reduzir as horas de sono e aproveitar mais o dia.
Radio Nowhere de Bruce Springsteen passa enquanto os comboios com cadência de 5 minutos percorrem o seu caminho para os lados do Marco ou para o Porto, todos os dias, todos os meses e ano após ano. É assim a vida: um ciclo de ir e voltar.
Temos discutido muito a economia, as estratégias empresariais e até a sociedade, mas acreditem que cada vez concordo menos com supostos planos de salvação milagrosos, com o que deve ser feito ou não, com estratégias que poupam tempo e trabalho. Acredito em uma ou outra coisa, mas não acredito que os alemães sejam mais felizes ou sejam melhores que nós. Não podemos comparar países. É como comparar namoradas, cada um tem a sua e tem é que gostar dela e ser feliz ao seu lado, acreditar e saber que é a melhor. E carros? Cada um tem o seu, se não há possibilidade para mais, há que se resignar ao seu carro e não comparar o tamanho ou potência. Todos os países com excepção daqueles que não têm rodas para andar têm a capacidade de nos levar onde queremos. É só saber a velocidade a meter e se não for mais depressa é mais devagar. Uns podem ouvir Tecnho e ir a grande velocidade no carro na faixa da esquerda confiando nas suas qualidades esperando não terem um acidente, outros encostam-se à direita e avançam devagarinho, com segurança. Para quê tentar ir a uma velocidade estonteante quando se sabe as limitações que temos? Vamos devagar, passos certinhos, com organização e planeando os passos para não serem maiores que a perna.
Já divago sobre a condição do país e o que acho que está correcto ou não, mas lá está, agora está na veia dar sempre um juízo sobre isto, sobre aquilo ou aqueloutro. Acho que se vai tornar recorrente e desde já peço desculpa.
Admiro profundamente estas pessoas que encontram a capacidade de acordar cedo todos os dias e se resignarem e, muitas até felizes, irem para o trabalho e voltar a casa com pouco mais do que com aquilo que saíram. E sabem onde está a força?
Eu digo, a força está lá dentro, porque ainda têm sonhos. Ainda movem o país. Eles, não os políticos que discutem o Orçamento de Estado durante meses, ou os colarinhos brancos que passam a vida num gabinete sem nada fazer a comprar e vender acções que esta boa gente valoriza, o proletariado, os camaradas. E atenção que estou muito longe de ser comunista ou sequer ter uma inclinação política para um lado ou outro. É como a o Jel na sua Luta diz: “A luta não tem partido.”
A força está no chegar a casa e ver o filho a crescer, que já diz mais uma palavra desde que o homem saiu, está na mulher ir buscar a criança ir ao infantário e ouvir as suas histórias cansada de mais um dia de trabalho a ganhar mal e a ser explorada. A força está nas pequenas coisas, no DAR como me ensinaram uma vez, dar o pouco que trazem aos poucos que lhes são queridos. Só assim estas pessoas têm força. Tirem-lhes as calças, o pão e a água. Mesmo assim continuarão a viver, ou a tentar como fazem agora, quando o estado retém metade do seu pão e o divide desigualmente, o estado: os políticos, não o PS, o PSD, o PP ou PCP, não me interessam partidos.
Que bonito é ver estas pessoas a ir, que saudade deixam até a mim que não lhes sou nada. E que alegria deve ser vê-las a chegar cansadas, mas com um sorriso de dever cumprido na cara. Fazem o seu melhor, tudo o que podem pela família e isso é o melhor repouso que podem ter.
Eu vou ser atendido não tarda, vou obter os meus papéis sem pressas. As pessoas mantêm conversas animadas sobre as suas doenças em vez de as chorarem, falam dos sucessos e insucessos dos seus queridos, coscuvilham de forma saudável, e lá por volta das 8, 9 ou 10 horas vão chegar a casa cansados e depois? Depois é hora de ir para a cama, abraçar os filhos, obrigá-los a lavar os dentes, tratar da mãe que está doente e não tem dinheiro para os medicamentos nem condições para viver sozinha, deitarem-se e abraçar-se o homem à mulher como quem abraça o mundo demasiado cansados sequer para discutirem. Adormecem e sonham, felizes como sempre, mas com a consciência que têm que dormir depressa, porque amanhã alguém tem que ganhar o pão lá de casa bem cedo.
São felizes? Sim, são. Com mais ou menos dinheiro não interessa. Só se fala de dinheiro. Levam tudo para o cano, os economistas, os políticos, os engenheiros e os médicos na ganância desmedida. Falta-lhes formação, falta-lhes a família. Tirem a família a estes poucos que ainda são felizes e lhes dão a comida e verão o que acontece a estes políticos ou altos quadros. Ninguém subsiste.
A família é a força, o apoio e a razão das coisas. É nela que se deve assentar os pilares do novo mundo. Não na economia deste ou daquele professor muito letrado que deu em doido e se pendurou num pinheiro por não saber mais da vida que não fossem os números ou se sentir muito sozinho. Não destruam mais a família. Essa é a crise Ocidental, o descrédito nas pessoas e famílias, nas entidades que não têm um nome.
O futuro está no passado e não em viagens espaciais ou combustíveis especiais, isso vem por acréscimo e com um desenvolvimento sustentado. Anda tudo a correr para lado nenhum, a tentar mostrar aos outros que é melhor ou pior e como se deve fazer, quando é no seio da família que ser bom realmente interessa.

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