segunda-feira, 26 de abril de 2010

O começo - VI

Página 6

Nunca mais me lembrei do que se tinha passado de manhã. Acabámos por tomar o pequeno almoço e entre jornais matutinos almoçar no café uma Paella que naquele dia era o prato principal no Agústin. Aqui em Londres havia uma diversidade cultural tão grande que os pratos dos mais diversos continentes acabavam por ser pratos tradicionais, portanto, para mim, não era nada estranho estar sentado em plena Exhibition Road a comer um prato tradicionalmente espanhol.

Entretanto eu e a Zoe, ficámos por ali mesmo até ao relógio marcar cerca de 15 e 30 , hora em que começou a chover. De forma repentina a chuva foi subindo de intensidade. Tudo bem que de manhã as nuvens no céu pudessem prever uns ligeiros aguaceiros, mas naquele momento a água caía desenfreadamente do céu completamente escurecido. Por volta das 4, devido à escuridão generalizada os candeeiros públicos acenderam-se. Não era nada fora do comum afinal ainda estávamos em Fevereiro e os dias não eram longos.

Agustín no entanto teve pena da Dacia que estava lá fora completamente a mercê do temporal e deixou-a entrar para o pequeno hall de entrada.

Por volta das 4 e 15 a chuva era tão forte que algumas sarjetas já borbulhavam no seu limite de admissão e passados momentos um forte granizo varreu as ruas e partiu alguns dos guardas-chuvas dos poucos traunsentes que eram corajosos o suficiente para enfrentar o temporal.

Eram horas de ir embora mas não havia sinais aparentes de uma melhoria, o remédio era meter os pés ao caminho. Ia deixar ali Zoe com a minha cadela. Elas seguiriam para casa dela onde eu as iria visitar e buscar a Dacia mais tarde, ou melhor, na manhã seguinte.

Meti os pés ao caminho. As pedras de gelo embatiam nos carros estacionados produzindo sons metálicos e gelavam o meu corpo. Tinha saído de casa completamente desprevenido e apenas o casaco me protegia da tempestade. Decidi passar por casa e pegar num sobretudo, afinal ainda tinha tempo. Desci a rua e entrei no metro em South Kensington. Como sempre àquela hora já havia bastante gente a fazer a viagem de regresso a casa. No entanto hoje, havia um silêncio pesado marcado por cada passagem nas junções dos carris e no chiar das rodas metálicas de encontro aos carris. Aquele zumbido que de manha me atormentara tinha voltado ainda que fraco.

A maioria das pessoas estavam cabisbaixas, ninguém falava com ninguém e uma mãe segurava a filha ainda bebé nos braços. Sussurrava-lhe qualquer coisa ao ouvido. Aquilo fez-me lembrar os meus pais e todo o carinho que eles me tinham dado. Tinha saudades deles, já não os via há bastante tempo e apenas falava com eles por telefone uma ou duas vezes por semana. Eles viviam em Manchester. Há uns anos o meu pai foi obrigado a sair da empresa onde trabalhava que faliu devido à corrupção dos gestores, uma siderurgia e, a procurar emprego. Só arranjou algo em Manchester e acabaram por se mudar para lá.

Saí em Lancaster Gate e corri até chegar à porta do meu prédio.

Passei por algumas lojas e todas elas tinham um luz mortiça acesa que tornava tudo tão deprimente, uma loja de reparações a electrodomésticos, onde eles se amontoavam à entrada à espera de serem concertados, uma clínica onde pacientes deprimidos aguardavam a sua vez, uma loja de decorações onde o funcionário esperava aborrecido pelos clientes,… tudo estava tão parado.

Entrei em casa e distraído não vi que as cartas que tinha encontrado naquela manhã. Estavam de novo na entrada no exacto sítio onde as tinha encontrado pela primeira vez. Acabei por tropeçar nelas. Mas no mesmo momento olhei para o relógio e vi que já estava atrasado, o tempo tinha passado tão depressa naquela curta viagem. Peguei no sobretudo e num pacote de bolachas que encontrei na cozinha que até então me tinha passado despercebido e saí porta fora já a correr. As cartas ficaram no sítio para onde as tinha pontapeado.

Corri de novo até Lancaster Gate, geralmente entro em Paddington, não sei porquê mas prefiro, mas como o dia hoje já tinha sido estranho o suficiente, não era isso que ia fazer a diferença.

No metro de novo mas em sentido contrário, as mesmas pessoas, as mesmas pessoas de sempre cada uma isolada e absorta nos seus pensamentos, numa cidade de 8 milhões poucas eram as pessoas que conheciam mais pessoas do que aquelas que se contavam pelos dedos das mãos.

Saí do metro em Knightsbridge, dali ao edifício onde eu trabalhava era um saltinho.

O meu trabalho basicamente era tornar os sonhos das pessoas realidade. Sim, era esse o meu trabalho, por trás das câmaras, onde os olhos não vêm e onde poucos entram. Eu era apenas um funcionário mal pago que trabalhava nas catacumbas de uma das maiores lojas de Londres, o Harrods em Brompton, onde todos os dias milhares de londrinos e turistas faziam as mais supérfluas compras. Eu apenas batalhava no meio de paletes, contentores e embalagens para lhes oferecer tudo aquilo que os olhos viam e a carteira podia comprar.

Sem comentários: