segunda-feira, 26 de abril de 2010

O começo - VII

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Entrei pelas traseiras do Harrods. Era um bonito edifício do século XIX que atraía os compradores com a sua beleza clássica e os interiores magnifícos, com todos aqueles departamentos luxuosos e funcionários capazes de satisfazer cada necessidade de cada comprador. Era realmente uma grande loja no entanto não sentia qualquer orgulho em trabalhar ali, se calhar por saber que toda aquela beleza era resultado de montes de caixotes que me passavam todos os dias pelas mãos. Para quem está a trabalhar no mesmo tipo de serviço que eu, estes lugares perdem todo o encanto: fica-se a saber que todo aquele aparato é resultado de um esforço humano enorme que nem é notado. Eu sentia isso mesmo, falta de reconhecimento e motivação mas precisava do dinheiro. A necessidade obriga-nos a fazer muitas vezes aquilo que menos gostámos.

Troquei de roupa, para o macacão azul bastante desbotado que todos éramos obrigados a usar. Era outra coisa que me irritava, a indiferença entre cada um de nós. Éramos verdadeiros autómatos Tayloristas regidos por uma cadeia de comando que não conhecíamos.

A parte mais divertida do trabalho era mesmo descarregar os camiões que chegavam de toda a Europa. Sempre gostei de conduzir o empilhador, achava-o extremamente divertido e era para mim o escape que precisava para começar o dia de trabalho. Peguei no empilhador e comecei a descarregar um camião francês que se encontrava à espera há umas horas. Incrível, por mais que trabalhássemos havia sempre alguém à nossa espera. Ao fim de 45 minutos o camião estava vazio e os documentos de entrega assinados e o camião pronto a partir. Curiosamente vi que o condutor se chamava Pierre Marshall na guia de entrega. Começámos a conversar junto à máquina de café do armazém enquanto ele fumava um cigarro e fiquei a saber tal como desconfiava pelo sobrenome que ele tinha descendência inglesa. Nada de estranho afinal já muita história houve entre os dois países com amores e desamores à mistura.

Pierre tinha a sua própria empresa de camionagem, em que era o patrão, mas em que trabalhava também, assim exigiam as contingências económicas da altura. A conversa evoluiu no sentido da amizade e sabendo que ele naquele dia dormiria no camião, convidei-o a passar a noite lá em casa. Afinal partilhar a casa com alguém e ter uma conversa com alguém que já viajou por toda a Europa é sempre bom. Zoe também devia lá estar e íamos ter um óptimo serão. Pierre foi-se embora, tinha que entregar a restante mercadoria e estacionar carro fora da zona metropolitana de Londres, dei-lhe a minha morada e algumas indicações. Não devia ter qualquer problema em encontrar o meu apartamento.

Continuei no meu trabalho: pego num caixote, largo um caixote, troco palete de sítio, descarrego um carro e bebo um café enquanto converso com alguém lá do trabalho que terá ainda menos aspirações que eu. Janto umas sandes que compro numa máquina automática que tinha sido reabastecida há pouco tempo, no entanto isso não era sinal que a sande estivesse nas melhores condições. Injuriei a pessoa que era responsável por confeccionar algo tão mau, mas como não servia de nada e era certo que não ia melhorar o jantar a esforço lá empurrei a comida para baixo com uma água natural. Sim não me apetecia refrigerante, tinha medo de engordar.

O trabalho não melhorou e foi com alívio que vi o relógio da parede a marcar as 12 da noite. Fui trocando de roupa calmamente para passar o tempo e bebi mais un café. Áquelas horas não havia ninguém para controlar o nosso serviço. Acabei por sair mais cedo, meti-me no metro de novo, àquela hora muito mais vazio, no entanto, mais soturno e escuro. Fazia-me sempre sentir que era uma personagem de um qualquer filme de terror em que a qualquer momento o metro pararia e todas as pessoas, de um momento para o outro, se transformariam em monstros ou zombies como nos filmes. Ainda me lembrava de jogar Resident Evil nas consolas e ser a única pessoa sã no meio de um inferno de zombies.

Quando saí em Lancaster Gate continuava a chover intensamente. Corri até à porta do meu prédio. Lá estava Pierre abrigado debaixo da arcada da entrada. Estava ali há pouco mais de 10 minutos. Tinha acertado em cheio, afinal de contas não lhe tinha dito a que horas eu saía do emprego. Trazia na mão uma saca com alguma coisa para comer de certeza. Entrámos e enquanto ele se secava e punha a mesa, tomei um banho e vesti-me. Sempre que Zoe dizia que ia aparecer cá por casa eu arranjava-me o melhor possível. No final de contas quem é que quer ficar mal parecido diante de uma mulher daquelas?

Liguei a aparelhagem. Tinha o cd dos Coldplay, a Rush of Blood to the Head a tocar e não me importei, gostava de ouvi-los em dias de chuva. Enquanto preparávamos a mesa para uma espécie de seia a campainha tocou e lá estava Zoe à porta. Não era de estranhar. Desde que os inquilinos se tinham recusado a pagar porteiro, qualquer pessoa tinha acesso aos apartamentos, ainda mais depois da fechadura da porta de entrada se ter estragado e ninguém ainda se ter aprontado para a compôr. A Dacia, toda molhada coitada, vinha com ela. Passei-lhe uma toalha no pelo macio enquanto Zoe lhe preparava uma refeição.

Assim estávamos quatro elementos reunidos para mais um serão. Só mais um dia das nossas vidas tinha passado. Amanhã esperava-nos um outro, ou talvez não. Quem poderia adivinhar o que se passaria nas próximas horas?

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