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Após o que me pareceu uma eternidade, recuperei os sentidos. Encontrava-me exactamente no mesmo sítio e parecia que ninguém tinha reparado no que tinha acabado de acontecer. Agora sim tinha a certeza de que algo de anormal se passava. Assustado fui até à secretária e qual não foi o meu espanto quando não vi as cartas que ali tinha deixado. Olhei em redor e em segundos revirei o quarto, mas claro que não era assim tão grande e eu tinha mesmo a certeza que as tinha deixado mesmo ali ao lado do computador.
Voltei à cozinha. Lá estava a Zoe sentada à minha espera com a Dacia deitada nos seus pés.
- Então? Encontraste?
- Não. Onde arranjaste as tuas?
- Não sei. Encontrei-as por mero acaso no sotão lá em casa. Mas passa-se alguma coisa? Estás branco.
- Não é nada, podemos sair agora? - Disse eu já com o casaco pelas costas e a coleira da Dacia pronta. Queria sair dali o mais depressa possível.
Já na rua caminhávamos lado a lado em silêncio.
- Hoje estás estranho.
Anui. A minha cabeça estava cheia de pensamentos, não queria conversar.
- Não sentes o ar mais pesado?
Concordei de novo, realmente a atmosfera estava sufocante, o peso do ar, as nuvens baixas, tudo fazia parecer que o céu ia cair.
- Hoje não consegui dormir a noite toda.
- Eu também não.
- Mas sabes como são os homens. Se ficam com uma mulher na cabeça a vida deles acaba. Vá! Diz-me. Quem é a felizarda? - disse a Zoe entre risos inclinando-se para mim.
Mais uma vez não me ri. Tentei fazer conversa:
- O que te impediu de dormir?
- Não sei. Apenas não consegui dormir. Estás tão calado. Assim não é divertido andar contigo. - amuou ela.
- Não sentes nada estranho Zoe?
- Se não sabes o que sinto... - ensinuou.
- E o que sentes?
- Sabes muito bem.
- Acho que não sei.
- Sabes sim. Não sejas mau...
Curiosamente, isto alegrou-me um bocado, ainda que nada tivéssemos dito ou feito eu e a Zoe tínhamos uma relação especial e pensar nisso alegrava-me sempre, até porque eu sabia que era um sentimento recíproco. Claro que gostava dela, mas não estava disposto a perdê-la como amiga por um capricho.
Estávamos a atravessar Hide Park e por momentos um esquilo cruzou-se à nossa frente e ficou estacado como que a saudar-nos. Nesta cidade por incrível que pareça os animais tinham perdido o medo das pessoas. Sorri, os meus problemas desapareceram por momentos. Estava ali ao lado da pessoa que gostava, acima de tudo uma amiga e com a minha velha companheira canina a passear num jardim.
- Assim sim. Gosto do teu sorriso.
- E eu gosto de sorrir. - Disse eu enquanto lhe passava um braço por cima dos ombros e a puxava para mim de forma carinhosa.
Pequenos momentos como este não os trocava por nada no mundo, nem ninguém os devia trocar.
Entretanto, enquanto nos drigíamos para a pequena coffee shop do Agustín, fui esquecendo os meus problemas. Já não me lembrava dos estranhos acontecimentos daquela manhã e o ar tinha-se tornado mais repirável.
Agustín era um espanhol bonacheirão que eu adorava e que servia as melhores torradas do mundo. Tinha um cafézinho pequeno na esquina de Exhibition Road com Princes Gardens perto do Imperial College. Adorava ficar sentado naqueles estofos macios e desgastados perto da entrada enquanto bebericava um chá ou lia um livro. Ali via o mundo passar, os estudantes do Imperial dos mais diversos estratos sociais, casais de namorados vindos de um passeio nos vários parques da região, turistas perdidos, e aqueles taxis e autocarros intemporais que para nós são tão normais mas que passam a vida a aparecer nos cartões postais.
Sentei-me com Zoe naquele sitiozinho habitual perto da entrada com vista para a rua. Ela era linda, e o dia naquele momento não me parecia nada estranho. Muito pelo contrário, ali eu não tinha problemas e tudo o que me preocupava ficava muito distante. Além disso, as cartas podiam muito bem ter sido um sonho e aquele blackout que pareceu durar uma eternidade apenas um momento em que perdi os sentidos. Uma queda de tensão. Vistos assim os meus problemas eram insignificantes não eram?
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