A primeira vez que o vi foi no ano de 2005. Não tenho a certeza quanto ao dia porque o sistema ainda não estava informatizado e após 3 anos tudo é removido. Nessa altura ele chegou com o último grito na música digital, era um mp3 pequenino que na altura devia ter lugar para um albúm pouco mais, mas já para a altura mostrava o quão vanguardista era. No entanto, quando perguntei o que estava a ouvir ele não respondeu como a maioria dos jovens que ouviam Eminem, Snoop Dog e mais não sei porque fiquei francamente indiferente a esse movimento. Ele apenas me deu para a mão o pequeno aparelho e disse para ouvir. Claro que não ia recusar embora apenas tivesse perguntado para propósitos médicos e me aproximar emocionalmente do paciente. Apenas hoje percebi o porquê da música que estava a ouvir.
Mas ao contrário da data lembro-me como se fosse hoje dele. Era igual ao que é hoje. Notava-se que não era a melhor pessoa do mundo pelo seu ar carrancudo e poucas palavras, até porque depois lhe perguntei o que se passava. Ele sentia-se mal, sem razão aparente pois não tinha qualquer doença, mal com o mundo. Gostava de se sentir bem com o sucesso dos outros, gostava de conseguir amar e acreditar e isso tolhia os movimentos.
Na altura disse que nada podia fazer. Era muito novo, muita coisa ia mudar, mas não sabia o que já se tinha passado. Mas realmente fiquei admirado com a sua atitude perante coisas que outros jovens ficavam indecisos ou se atiravam de cabeça. Fechei o caso na gaveta dos resolvidos, casos de jovens com problemas estavam a tornar-se comuns e repetitivos, além disso eram geralmente motivados pelos pais e pela sua crescente mania das inteligências e superioridade genética. Obviamente depois de lhe dizer que não o podia ajudar não tornou mais a este consultório, até eu ter recebido uma carta de um doutor meu amigo que me indicava que era realmente um caso a observar mas sem contornos clínicos graves.
Tornei a ter notícias em Dezembro de 2005. Estava com um olhar exactamente igual. Via-se que ele era daquelas pessoas extremamente inflexíveis, incapaz de dobrar muito menos quebrar, no entanto a fragilidade emocional que apresentava quase suplantava essa inflexibilidade. Tudo isto sabia através das primeiras perguntas que tinha feito já em 2003.
Hoje mais velho 2 anos, as suas opções eram exactamente as mesmas, o que era de estranhar. A evolução que havia em termos físicos era grande, no entanto e embora soubesse que existia uma boa progressão na escola, os seus gostos e atitudes não mudavam muito. Gostos musicais, cinematográficos e todos aqueles em que me apoio para fazer um diagnóstico detalhado da pessoa.
Continuas sem fumar?
Hum hum, nunca experimentei.
Tens intenções de?
Não.
Porquê?
Não gosto, é simples.
Como sabes se não gostas? Nunca provaste.
Talvez não, mas garanto que não gosto.
Muito bem, e bebidas?
Sumos e colas. O resto não tenciono sequer experimentar.
Porquê tanta inflexibilidade?
Porque não gosto.
Reparem no como é estranho alguém ter tanta certeza, principalmente na idade dele e nunca pensei que aquilo se mantivesse até hoje. Pensei que fosse só um daqueles casos “Vou andar sempre com o meu pai e fazer o que ele quer.” Mas quando falei com o pai soube que ele queria exactamente o contrário. E talvez por isso ele saiba mais do que aquilo que aparenta. O que a maioria das pessoas pensa que não passam de histórias são verdades confirmadas pelos mais próximos.
Então e mulheres?
(Riu) Que tem senhor doutor? Se quiser falar delas tenho todo o gosto em falar. É um assunto que me fascina.
Então discursa vá.
Não, pergunte o que quer saber e eu digo-lhe se souber.
O que achas delas?
Que tipo de resposta quer? Algo como a maioria diz ou aquilo que penso?
As duas.
As mulheres são todas umas putas. Gado de dois cus, mas são boas e necessárias e se mal com elas pior sem elas. A vida é puta. Basicamente fodes ou és fodido.
É isso que pensas?
Não.
Então?
A vida é de facto madrasta, mas não se trata de fazer o que os outros nos fazem. Basicamente se as pessoas não mudassem as suas ideias tão facilmente e apenas se adaptassem ao meio a coisa seria muito diferente. E não as mulheres não são assim. Atenção, sou homem e como tal não tenho dúvidas que elas vão mandar em nós, no Mundo, em poucos anos, tal como nós mandámos nelas durante tanto tempo. É cíclico e como tal vejo grandes problemas para o homem branco.
Tens alguma ideologia política marcada?
Não, se me está a perguntar se faço parte da extrema-direita nada mais errado. Apenas acho que tudo é cíclico e como tal o homem branco que dominou e escravizou outros povos além das mulheres tem agora a sua hora em que realmente o jogo se inverte. É cíclico e natural.
Mas gostas de mulheres?
Claro, a questão é mesmo essa. Nós Homens, gostámos delas. Mas temos tendência a só querer a parte física e a desprezar tudo o resto, chamámos chatas, cansativas, incoerentes. Mas lá está, somos diferentes. É impensável para mim passar 2 horas no cabeleireiro, demorar a escolher uma roupa ou experimentar 20 pares de calças. Mas tenho que perceber que elas o queiram.
E percebes?
Não e por isso estou aqui. Repare, não percebo o porquê de os homens dizerem que devem aproveitar uma oportunidade de “as comer” e o oposto já não ser tão divertido. No entanto o oposto começa a acontecer e elas também gostam de “nos comer”, portanto em vez de evolução acho que está a acontecer o contrário.
A sociedade?
Sim a sociedade. Quer que continue?
Não, já chega.
Mas o que te preocupa?
Ah, senhor doutor. Toda a gente me pergunta. Mas eu vou atropelar toda e qualquer pessoa, não para atingir um objectivo, isso não, mas porque sou um mecanismo demasiado pesado para parar.
Como assim?
Imagine uma roda dentada, um volante de motor, pesadíssimo. Está na hora de trocar porque está desgastado, quebrado, no entanto está a andar tão depressa que quem quiser ajudar e meter a mão vai ficar sem ela.
Tens medo disso?
Sim, tenho medo de magoar as outras pessoas. No entanto sim gosto que metam as mãos e arrisquem, pode ser que alguém pare, até porque tenho a noção que mais cedo ou mais tarde vou precisar de parar.
E então?
As pessoas não sabem parar nada, mais depressa dão tiros contra um motor para o parar do que o tentam reparar. E é isso que as pessoas têm feito. Atiram contra mim, obviamente isso faz ricochete e as pessoas acabam por se magoar mais do que eu e acabam por ficar sem as munições que deveriam ser direccionadas para outras coisas. Desculpe a linguagem simples mas é uma forma de explicar aquilo que sinto.
E tens alguma solução?
Não, não tenho, venho apenas aqui à procura de uma solução.
Nessa altura percebi que ele queria algo mais de mim além de alguém que o ouvisse. Queria uma discussão, uma conversa que excitasse a sua mente. No entanto apenas lhe disse o que seria capaz de dizer a qualquer um da sua idade:
Rapaz, sai á noite, toma uma bebida, conhece pessoas e faz amigos, pode ser que esse tal “volante” de que falas vá acalmando e o consigas controlar. Amacia o teu ego e acalma o espírito.
A consulta ficou por ali. Desejei-lhe boa sorte e bom fim-de-semana entre risos e um passar bem.
Não tinha percebido absolutamente nada do que se tinha passado e tinha interpretado aquilo como um caso de insatisfação crónica adolescente.
Hoje ele acaba de sair daqui e percebo agora mais do que alguma vez percebi sobre a sua natureza inquieta. Lá fora ouvi um carro e como tenho uma janela para o parque ouvi a exacta música com que aqui tinha aparecido da primeira vez. Estamos no final de 2010 e ultimamente ele esteve cá mais vezes e apontei muitas coisas sobre ele, coisas que me puseram em dúvida até mesmo sobre a minha profissão e o meu ser.
No fundo ele sabe quem é e eu estava errado. Ele é a pessoa que é, pode até nem identificar-se com o seu nome, é algo normal, mas ele continua fixo aos seus ideais e é isso que o mantém de pé mesmo depois de algumas atrocidades. Hoje posso dizer que aquele rapaz já é desde 2003 um homem. Porque hoje com a confiança que tenho com ele foi possível descobrir de onde vinham todas as certezas e forças.
Embora raramente o revelasse ele sabia de coisas e sabia qual o sofrimento inerente a determinadas situações e isso é espantoso, como era possível? Ele admitia que nunca tinha acontecido e não, uma coisa que notei é que não mente. Geralmente oculta uma ou outra coisa para bem dos outros, e inventa uma ou outra situação para a pessoas se sentir mais segura mas acaba por contar.
No seu currículo de vida encontram-se já todas as experiências que só adquirimos aos 40 anos ou por volta dessa altura. Acidentes, lutas, situações embaraçosas, discussões…
Quando diz que percebe, na realidade percebe e isso sensibiliza-o. E quando vê as pessoas fazerem alguma coisa sabe os problemas que essas acções terão porque está familiarizado com elas. Obviamente nunca viveu todas essas situações no entanto já assistiu a grande parte delas e geralmente o que o deixa triste é que os seres humanos continuem a fazer asneira em cima de asneira. Parece convencido e ego centrista dizer que percebe e sabe o que se passa e na realidade se calhar até é, mas quando lhe perguntam o que se passa e ele se abre para uma conversa ele realmente sabe o que se passou. Hoje falei com ele sobre o meu divórcio e ele sabia exactamente o que se tinha passado. O tipo de dor, o tempo que durava e a solução para a dor passar. Disse tudo isto a olhar-me nos olhos sem qualquer remorso, sem qualquer dúvida e isso quase me reconfortou, no entanto vi-o cansado após esta conversa porque ele gastou toda a sua energia a reconverter todos os sinais na sua mente. A fractura da psique que falei existe indubitavelmente, mas somos nós que a provocámos quando pedimos uma conversa dele porque a sua adaptação é incrível. Um camaleão sentimental assim chamaria apenas permitido pelo seu eu inflexível que nunca perde o rumo mas que lhe permite a adaptação.
Reparem que desde 2003, ou desde que o conheço nada mudou na sua pessoa. As escolhas continuam a ser as mesmas e fiel aos seus projectos e sonhos, porque já sabe escolher os seus sonhos.
Noto no entanto, uma grande falha. A falta de um exemplo prático que diga como deve agir quando chega a um cruzamento. Infelizmente ninguém segundo o próprio o pode ajudar nesta situação porque o caminho a trilhar sai fora de todos os caminhos percorridos. Ele próprio faz a analogia com a selva e o machado que usa para trilhar o caminho numa luta constante com a realidade. No entanto, ao contrário do que chegou a pensar isso até exerce um fascínio sobre as outras pessoas embora o deixe exausto e por isso ele recorra a pessoas mais velhas para lhe darem algumas informações, esse é o seu combustível: as outras pessoas e aí se prende o maior problema. Poucas pessoas são um combustível explosivo e depois da sua explosão sobram as cinzas que não se podem reutilizar, algo destrutivo sem dúvida mas essa é a natureza dele, a capacidade destrutiva, a capacidade de aniquilar moralmente outra pessoa que não se revista de cuidados porque no fundo a convivência com alguém do género é perigosa e propensa a riscos. Notando isto e estando ciente do que se passa a solução que ele encontra é o afastamento ou a mentira piedosa. “Não me lembro” ou “Não sei” que geralmente é dito sem olhar nos olhos e logo se nota que não é a verdade.
Ultimamente tenho visto que anda cada vez mais sozinho e separado, além das queixas de mau sono porque há coisas que o inquietam. Normalmente até uma certa idade seguia os conselhos dos pais e os seus ensinamentos, hoje está numa fase que apresenta modelos novos aos pais, que quase os ensina e como tal falta-lhe um resguardo, uma saída de emergência numa descida íngreme que a sua família e casa representavam.
Onde encontro a ajuda que procuro senhor doutor?
Essa pergunta vinda de um espírito tão resoluto inquietou-me, porque sabe muito bem que a família não estará sempre cá para o ajudar, é finito enquanto a necessidade de combustível e infinita para ele. A saída está em alguém do seu lado, no entanto também percebo que a sua preocupação na destruição de alguém que lhe é querido porque muito provavelmente como todas as outras pessoas que o seguiram acabaram por ficar pelo caminho sem forças para lutarem. Não que ele ache que tem um poder superior de luta, não é isso. Ele só tem uma diferença, que são as ideias muito, mas muito bem definidas. Ele sabe exactamente o que quer e como tal não desiste, geralmente desistem dele mas esse é o combustível mais forte que ele pode receber porque “quando alguém desiste toda a sua energia vaza, toda a má acção é para mim fonte de energia enquanto para a outra pessoa é cansaço e isso leva ao afastamento até que surge um ponto que essa pessoa desiste”.
No entanto, é quase divertido a sua confiança que contrasta com a falta dela nas outras pessoas. Ele tem toda a certeza que quando quer se pode adaptar, pode despender alguma da sua energia naquilo que sabe que as outras pessoas querem. A simpatia, o romantismo, a paixão são intrínsecas à outra pessoa.
“O senhor doutor sabe que me disseram que apenas se vê os sonhos a preto e branco e outras pessoas disseram-me que mesmo em vida apenas vêem o preto e o branco e nunca o cinzento. Obviamente não disse nada e tentei mostrar a essas pessoas que estavam erradas. Pintei o quadro dos meus sonhos que está por cima da cabeceira e que tem cinzento e aprendi a misturar as cores. Não por minha causa porque eu só vivo parado ou a correr, embora ande a velocidade média na estrada o meu desejo é sempre andar muito depressa e faço-o sozinho, não gosto de ler se não for depressa e não gosto de trabalhar se não for depressa. O meu empenho ou é de 100 por cento ou pura e simplesmente zero, mas para conviver com alguém aprendi há muito tempo que sem deixar de me empenhar a 100 por cento posso apenas mostrar metade disso, viver no limite não é correr risco de vida, pelo contrário é apenas tentar fazer sempre a coisa certa e assumir que é esse o objectivo. Isso é o limite, é o que nos gasta toda e qualquer réstia de gordura no corpo ou cabelo, porque isso sim exige tudo de nós e sabe-se à partida que pode-se não ganhar. O jogo da perfeição. É o único jogo em que arrisco sabendo que as probabilidades de ganhar são baixas.”
Com este discurso nada podia dizer. Aliás, já tinha dito quase tudo, nunca com um paciente falei dos meus filhos, da minha mulher ou da minha paixão pela ribeira e futebol. Entendia agora porque não tinha comportamentos normais, como beber nem que fosse um licor a seguir ao café. Essas eram as situações que quando acordava de manhã, mesmo sem se ver ao espelho porque não os quer, lhe davam a certeza física que não estava no mesmo caminho que os outros.
Para ele a perfeição é o limite e sonhos e pesadelos nada o fazem alterar do seu caminho que no fundo não revela, mas tenho a certeza que se prende com o limite. E assim ninguém conhece quem ele é, nem o que faz, nem o seu futuro junto dele. Aliás por mais que me diga quais são os seus entretenimentos nas horas vagas não consigo mesmo assim saber o que faz nem o que sente. É mais que óbvio que ele tenta puxar as pessoas consigo neste caminho, mas geralmente a corda vai-se degradando e quando começa a arrastar as pessoas ele sabe que apenas as magoa e que está na hora de as libertar.
Este rapaz não tem medo de nada, nem de sofrer.
Antes de ires, diz-me só porque não tens nem queres espelhos.
Pura e simplesmente não me quero ver, porque o seu maior inimigo é você mesmo, e o meu maior inimigo sou eu. E o nosso inimigo é muito forte porque não é físico como tal não o podemos vencer por meios convencionais, logo evite-o, ou junte-se a ele e não é com confrontações que o vai conseguir. O espelho provoca incertezas e essas apenas alimentam aqueles que se lhe opõem.
Com isto desejou-me boa noite e saiu contente. Tinha sugado a minha alma para elevar a sua. No fim corri para casa envolto em dúvidas e quando lavava os dentes para me ir deitar perguntei se devia tirar dali o espelho. Perguntei à funcionária o que achava.
Então para quê senhor doutor? Está tão bem aí. Mas porque pergunta?
Nada, nada Margarida. E tirei o espelho.
E assim suguei a alma à pobre criatura e percebi como ele conseguia viver sem dúvidas. Porque ele sabia o porquê das coisas e apenas fazia outras duvidar daquilo que ele sabia sem lhes dizer o porquê porque de facto realmente não interessa para os outros, só para aqueles que perguntam e querem aprender.
Esta era a música que o acompanhava. Embora ache que percebo tenho que lhe perguntar o porquê e o significado desta música.
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