segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Diário Psicológico 4

Hoje numa sessão de tratamento decidimos sair à rua. O paciente já não me visitava há uns tempos, teria que ver nos registos, mas certamente já lá vão uns meses.
Diz ele que se começou a sentir melhor e isso é aparente. O seu aspecto é outro. Está mais bem composto, até mais bonito diria, isto porque nunca soube muito bem dizer o que era bonito ou feio e tenho a certeza que a beleza é muito relativa para quem a avalia.
No entanto, há uns tempos para cá diz que tem sentido os mesmos problemas do antigamente. Sentimento de cabeça vazia, leve, o cérebro flutua diz ele e isso provoca-lhe uma enorme dor de cabeça. As costas estão novamente tensas e retesadas de preocupações e de cansaço físico.
Ao longo da conversa conseguir perceber muitas das coisas que o afligiam e que mais não são que normais. O facto é que ele ainda é uma criança digam o que disserem e ter que juntar e poupar o seu dinheiro é uma responsabilidade muito grande sabendo que não existe qualquer fonte para recorrer em caso de quebra total. Mas é para ele o dinheiro importante? O facto é que não é. Segundo percebi ele apenas quer o dinheiro para ter o conforto a ele associado, nem o pretende para ajudar ninguém porque só ajudará se lhe pedirem porque de outra forma seria ter pena.
Mas se o dinheiro é um problema é apenas o menor. Numa tentativa de seguir os passos correctos na vida esta criança tem sacrificado muito, inclusive a sua juventude, isto a meus olhos porque para ela nem existe essa ideia de mocidade. Sempre foi tratada como um homem e teve que crescer muito depressa. Esse crescimento, claro, não se deu sem alguns problemas e choques entre colegas e amigos que me parece que o marginalizavam como é normal quando alguém é um pouco diferente. E será ele tão esquecido como se faz parecer? No fundo não, apenas varre para debaixo do tapete aquilo que não lhe interessa.
Hoje sei que para manter a sua sanidade comete algumas irregularidades, não criminais ou antiéticas, apenas aquelas irreverências próprias que as crianças fazem. Estragar uma ou outra coisa por curiosidade, evitar o estudo e ao invés ver um filme,…coisas do género.
Mas sempre me deixou curioso, será que ele gosta de companhia? Sim, claro é um ser social como os outros e vi bem como era feliz ao explicar aquilo que pensa ou faz, mas também percebi que a cada palavra que eu dizia ele me avaliava. No fim tínhamos andado meia hora e ele estava exausto e pediu para parar porque eu assim lhe tinha dito no início. Se não o tivesse feito ele continuava? Claro, é esse o seu espírito.
Há uns tempos avaliei o seu perfil e a árvore genealógica. Curiosamente ninguém na sua família tem os traços que o distinguem. Não há queixo, pernas, cabelo ou olhos de ninguém a ele chegado com as mesmas características. O pai uma vez trouxe-o e vi alguns traços mas nada definitivo, mas segundo o que me deu a entender os seus modelos estão a desaparecer.
Desenvolveu o hábito de se interessar pelos seus entes mais afastados e sabe que as maiores semelhanças se encontram no seu tetravó, pelas histórias que lhe contam. Nunca o viu com olhos de ver para além dos de criança, mas aproxima-se agora cada vez mais do seu avô materno. Numa pequena saída, vi-o e de facto são parecidos em gostos e capacidades.
É curioso,..reparem que existe uma enorme instabilidade neste raciocínio que em nada favorece as suas relações com várias pessoas. Hoje quer isto e parecesse com X e, amanhã aqueloutro e quer Y. Mas será assim? Não, mesmo sem recorrer ao ficheiro sei que ele continua a tentar seguir um caminho perpendicular ao que é feito pela sociedade a que ele tem um ódio enorme (a ver).  Um caminho de rectidão e postura que em nada se coaduna com o que aprende. E essa força parece-me que vem de contactos fortuitos com pessoas variadas. Um bom dia na rua, um adeus ou um precisa de ajuda. Aí nota-se que ele faz um esforço em remar contra a maré de indiferença.
Mas o que o cansa assim? O que faz dele aos meus olhos tão infeliz, ou um mártir? Porque é o que ele parece, sempre a dizer que sofre pelos outros, a imaginar coisas para melhorar a vida deste ou daquele, a tentar inventar algo?
Hoje percebi um pouco mais sobre isso. Reparem como ele tem a mente aberta e me bebe as palavras, sem fazer barulho. É uma violação. A sua mente está aberta de uma forma descomprometida e leviana. Ele absorve tudo. O bom e o mau. Ele vê o barro a ser moldado e os cacos quando parte. Ouve a música mas vê a corda a vibrar a 440hz. Vê televisão e as suas mil cores, mas sabe que são apenas 3. Dados adquiridos? Um ou dois, mas de resto a sua mente está aberta e cada situação pode massajá-la como pode penetrá-la de uma forma dolorosa e estragar-lhe a noite de sono.
Como é que é possível ele duvidar que 2 é 2? É quase inacreditável e de loucos, mas o facto é que dá-mos isso por adquirido, mas e se não for? Além disso, a sua explicação é plausível embora não a consiga nem queira reproduzir porque começaria a duvidar até da minha própria existência se assim fosse.
As suas ideias e comportamentos são pouco naturais, no entanto não sinto qualquer estranheza em ouvi-las, mas depois de estar com ele e chegar a casa comecei a questionar-me sobre se ele teria alguma razão. Hoje não sou o mesmo que fui? Este computador será já outro? Será que aquilo que ele pensa está certo? Será que o caminho a seguir é mesmo este?
Penso que este paciente me começa a mudar e dou-me por mim sentado a pensar no que ele faz e na forma como se processa uma ideia no seu cérebro. Parece que é um ciclo de destruição, construção e aperfeiçoamento em que cada pensamento é condicionado por variáveis aleatórias. Preocupo-me com ele, pois no fundo é apenas uma criança. Mas começo-me também a preocupar comigo.
Antes de ir dormir e para continuar mais tarde, perguntei-lhe na volta ao consultório:
Porquê todo este martírio? Porque não deixa apenas as coisas fluir? Virem ter consigo? Porque não faz Yoga? Dança ou teatro? Porque não sai e vai ter com uns amigos ou amigas?
Não me respondeu, ou melhor fê-lo, mas com um riso de reprovação e um abanar de cabeça em descrédito como quem me acha burro, antes de voltar a apertar-me a mão e a desejar-me felicidades e sair muito mais bem-disposto do que o que entrara.

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